O admirável não é apenas que as roupas sejam tão belas, que os movimentos se
desenvolvam com tanta harmonia: o admirável, principalmente, é que tudo isso
deslize sobre patins. As figuras vêm de longe, velozmente, mas numa velocidade
suave, silenciosa e feliz. Devíamos andar assim no mundo. Nossos trajetos
deviam cruzar-se desse modo: sem choques nem pausas, com um desenho de
cortesias que se entrelaçam delicadamente. E vem a ser justamente a mais
adequada ao conjunto, como se a submissão à lei não lhe diminuísse o valor
próprio mas, ao contrário, o salientasse e lhe revelasse imprevistos aspectos.
Alguma coisa fugidia, apaixonada de distância e mistério existe no nosso
coraçâo, pela delícia que nos causam os movimentos dos patinadores retirando-se
implacável e sutilmente, como um som que gradativamente se apaga, uma estrela
que, inexorável, desaparece. Os patinadores vão sendo levados, num tempo mais
profundo que o do seu bailado, absorvidos pelo ímã do horizonte, inalcançáveis
e íntegros como deuses.
Alguma coisa também deve existir em nós atraída pela resposta do eco,
ansiosa de repercussões e espelhos, para nos encantarmos com os patinadores
que se acercam e reconhecem e combinam seus abraços com esse perfeito ritmo
em que confundem e recuperam sua unidade, aproximando-se e separando-se, livres
e prisioneiros, deixando que se cumpra com rigor e graça a parábola de seus
encontros e desencontros.
Pensa-se gue isto é uma distração frívola, e está-se diante da verdade do
mundo, iluminado de outro modo, com algumas pessoas interpretando esta vida de
cada dia, apenas alegoricamente.
Alguma coisa deve existir em nós que se recusa a andar levitando entre as
douradas estrelas: que ainda não se desprendeu totalmente da selva, da burla,
do árido ensinamento do chão. Porque deste modo nos regozijamos com as presenças
grotescas, e as formas inseguxas, e o medo e o risco, a aventura talvez inábil
do gesto incerto... Pode ser que não sejamos sempre desmesuradamente líricos:
um prosaísmo pesado, espesso, talvez compense em banalidades rasteiras o ímpeto
com que, outras vezes, nos atiramos a altas e inquietantes expedições. . .
Mas é tudo sobre patins, num abrir e fechar de olhos, sem que mais nada nos
detenha, porque já partimos, seguimos, continuamos, estamos sendo levados, pela
nossa vontade e pela fatalidade deste escorregar por uma superfície gelada.
Alguma coisa em nós deseja a solidão, a companhia da própria sombra,
apenas, para assim nos emocionarmos com o dançarino isolado que se debruça
para o seu reflexo, que em si mesmo se encontra, seus pés unidos
perpendicularmente a seus pés, e assim vai, e volta, e não volta, fazendo o seu
caminho no vazio, inventando um itinerário e uma direçâo.
Mas alguma coisa nos atrai para o convívio e o colóquio, pois assim nos
alegramos com a multidão festiva que se reúne e desdobra numa infinita
coreografia, toda cintilante e entusiástica, depois de tantas provas
acrobáticas, de tantas evoluções e tantos e tão variados arabescos.
Sobre patins. Com essa rapidez que desejaríamos ter, que o nosso
pensamento, o nosso coração desejam, e este nosso corpo fatigado não consegue
possuir. Sobre patins. Num mundo sem esquinas, sem acidentes, comtis èspaços
oferecendo-se á nossa passagem, e todos nós, cordiais e puros, realizando em
sua plenitude o ideograma da nossa vida na clara página da existência. Sobre
patins. Com a disciplina fluida de cada instante, de horizonte a horizonte,
sem erro, temor nem desfalecimento!
Cecília Meireles
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